A TEMPERANÇA, VIRTUDE DESAPARECIDA





A TEMPERANÇA, VIRTUDE DESAPARECIDA

Marcel De Corte

I

Refletir, publicar, escrever sobre a temperança é hoje um desafio. A palavra desapareceu do vocabulário do homem médio, assim como do vocabulário da “elite” intelectual, laica ou religiosa. Quanto a nós, a última vez que a escutamos foi no início do século, em nossa infância, quando o professor instava-nos, à saída da escola, a aderir à uma “sociedade de temperança” ― como as muitas que então havia na Bélgica ― cuja específica finalidade era combater, não as incontáveis formas da intemperança, mas o alcoolismo, que afligia um pouco por toda parte, particularmente na classe operária. O petit Robert dá a ela apenas dois sentidos; um, “didático”: moderação em todos os prazeres do sentido; outro, “corrente”: moderação no beber e no comer, mais especialmente no consumo de bebidas alcoólicas. Ambos se volatilizaram tanto da linguagem da sociedade contemporânea como da terminologia dos moralistas contemporâneos. À exceção de alguns “paleotomistas”, cuja leitura ainda faz nossas delícias, não a encontramos em parte alguma durante um meio-século, nem mesmo nas conversas.

Não podemos sequer dizer com Valéry que «toute chose m´est claire à peine disparue; ce qui n´est plus se fait clarté». Além da palavra que a designa, é a realidade mesma da virtude da temperança que se evaporou da alma dos homens entregues às delícias da “sociedade de consumo” e, daqui a pouco ― ou mesmo, a partir de agora ― aos suplícios da moderna economia materialista em plena crise. Os cristãos ― os católicos ― não escapam desse saldo negativo, tanto no ensino que recebem quanto em sua conduta. A este respeito, estamos em situação idêntica a do fim do Império Romano, tal como veementemente a descrevia Santo Agostinho: «onde encontrar quem, diante de tais monstros de avareza, orgulho e luxúria [1], cuja iniqüidade, cuja impiedade execrável constrange Deus a flagelar a Terra, conforme antiga ameaça, quem, volto a perguntar, seja perante eles o que deve e com eles conviva como é preciso conviver com semelhantes almas? Quando se trata de esclarecê-los, censurá-los e, mesmo, repreendê-los e corrigi-los, com bastante freqüência, funesta dissimulação nos detém, ou preguiçosa indiferença, ou respeito humano incapaz de afrontar alguém já de si perturbado, ou temor a ressentimentos que poderiam causar-nos prejuízo e prejudicar-nos no tocante a esses bens temporais cuja possa nossa cupidez cobiça, cuja perda nossa fraqueza receia.» [2]

Para que fosse diferente, seria preciso que a temperança fosse professada como virtude e mesmo como virtude cardeal que, apesar do lugar que ocupa, depois da justiça, da prudência e da força, não deixa de intervir, se exercida, em quase todas finalidades da vida cotidiana do homem. Como estamos distantes disso! Ora, a temperança é uma virtude, i. é, no sentido esquecido da palavra, uma disposição natural que inclina ao que é segundo a razão: o nome mesmo de “temperança” o indica, pois significa uma certa moderação, um “temperamento”, ou, em termos precisos, uma certa “medida no julgamento e na conduta”; enfim, uma “solução adequada” aos problemas que envolvem os prazeres que o homem não deixa de experimentar no curso de sua vida [3]. Esta medida que a razão impõe às ações e às paixões humanas é o sentido geral da palavra “temperança”. Em seu sentido mais restrito, que a define como virtude, a “temperança é a virtude que põe um freio à concupiscência que mais fortemente atrai o homem. Ela tem, pois, uma matéria especial” [4]: a concupiscência de bens sensíveis que todos desejamos e, particularmente, o deleite de tocar o que nos parece atraente e que é tanto maior quanto os atos que se dirigem a eles provêm de um impulso de nossa natureza, a saber, daqueles responsáveis por conservar a natureza do indivíduo ― o comer e o beber ― e a natureza da espécie ― a união do homem com a mulher. A temperança, portanto, trata do prazer do tato, que é, de acordo com Aristóteles e com o bom senso, a raiz de todas as sensações [5]. Coisa que observamos nas expressões populares, que se referem a um espetáculo dizendo que agride a vista; de um barulho, que nos fere os tímpanos; de um perfume, que acaricia o olfato; de um vinho inebriante, que seu buquê envolve o paladar. Essas metáforas são muito sugestivas.

Santo Tomás distingue um elemento principal entre os prazeres do tato que a temperança deve regrar, e que servem à conservação e à transmissão da vida humana ― a deleitação essencial, essentialem delectationem, que acompanha tanto o consumo de alimento e de bebida como o uso da mulher, que são de necessidade vital para a humanidade ― e um elemento secundário que acompanha o primeiro para torná-lo mais agradável, qual seja, a beleza e a elegância da mulher ou o sabor e o aroma dos alimentos. O necessário uso sempre se dá pelo contato. Os outros sentidos só intervêm para dar ao tato determinações subsidiárias que acrescentam um agrado específico. Ora, como estas complementações dão relevo a todos os demais sentidos que não o tato, é preciso dizer que a temperança diz respeito sobretudo ao tato e acessoriamente à visão, ao paladar, ao odor e à audição. Isso não é mera sutileza. Sendo próprio do filósofo distinguir o essencial do acessório que o acompanha, é preciso dizer, nesse caso, que o prazer, no primeiro sentido do termo, está ligado intimamente ao ato de comer e de beber, assim como ao ato de procriar, sem que o prazer, no segundo sentido, necessariamente esteja. Santo Tomás sempre orienta seu pensamento profundamente objetivo à essência mesma das coisas. Importa, pois, concluir com ele sobre esse ponto, que “a temperança e a intemperança só se relacionam de forma secundária aos prazeres do paladar, do odor ou da visão, na medida em que as impressões desses sentidos contribuem para o uso deleitoso das coisas necessárias à vida, as quais dependem do tato" [6]. Todavia, eles estão concretamente ligados ― tal como o acidente é inseparável da essência, sem que aquele se confunda realmente com essa.

Se é verdade que a virtude ― e aqui cada palavra tem peso ― é “uma disposição estável para o bem agir, cujo sujeito próprio é a faculdade voluntária dum ser inteligente” [7], a temperança é não apenas uma virtude própria ao homem ― como ser virtuoso sendo um intemperante? ― mas também uma virtude cardeal, uma virtude fundamental, em torno da qual giram, como ao redor de um gonzo (cardo), uma série de outras virtudes, semelhantes a uns feixes que se subordinam e a subdividem; uma virtude em que se exprime, de modo eminente, a ordem da razão no que diz respeito às ações humanas. Ora, a temperança introduz uma ordem particularmente digna de elogio (praecipue laudabilis) nas manifestações do ato de tocar, exatamente onde a vida humana a exige imperiosamente [8]. Deste modo, como veremos, ela domina uma longa série de virtudes adjacentes que nossa época desconhece vergonhosamente. Enquanto virtude, ela rege os prazeres sensíveis e as concupiscências carnais que acompanham necessariamente a vida do homem e, enquanto virtude cardeal, os demais prazeres e concupiscências análogas, que são regulados por outras virtudes conexas que se ligam, seja à título de condição, de espécies de que a temperança é o gênero, ou de energias morais que lhe são conexas ou aparentadas [9].

Está claro, além disso, que as realidades nas quais se exerce a temperança são mais necessárias à vida que aquelas das virtudes subordinadas, e que são mais naturais ao homem. Não se trata aqui da vida em geral, mas da vida vivida. Com efeito, se é verdadeiro dizer que “o bem tem razão de fim e que o fim é, ele mesmo, a regra do que se ordena ao fim”, e que “todas as coisas que se apresentam ao uso do homem como deleitáveis devem ser ordenadas ― e este é o ofício da temperança ― tanto à vida presente como ao seu fim”, no ato concreto em que ela se exprime e, portanto, de acordo com o lugar e o tempo, as condições sociais em que se dá por nascimento ou de acordo com a profissão que exerce (officia), segundo as congruências daqueles com os quais vivemos [10].

Há portanto que se levar em conta, no exercício da virtude da temperança, as realidades exteriores, as riquezas que possuímos, as funções que ocupamos e, acima de tudo (multo magis), a honestas, i. é, o caráter honorável, a estima e a honra com que nos revestimos, a consideração social que nos envolve [11]. Em Santo Tomás, nenhuma virtude cardeal ― ou qualquer outra que lhe seja associada ― é personalizada, como temos demasiada tendência em fazer hoje em dia; o laço íntimo e profundo das virtudes com a sociedade, com a política (no sentido etimológico e nobre do termo) é sempre destacado por ele. O único fato de que a temperança depende essencialmente da vida presente, que é sempre uma vida social ― nenhum homem é um selvagem solitário, ou um deus ― bastaria para atestar isso.

Ainda que “a temperança apenas modere as concupiscências e prazeres individuais” [12] e que, por isso, se mostre inferior à justiça e à força, que pertencem mais ao bem da sociedade, ela não deixa de estar, por sua vez, orientada para o bem social, não somente porque procede das diretivas que a educação acrescenta à natureza [13], mas ainda e sobretudo porque ela está condicionada pelo pudor e pelo senso de honra, suas partes integrantes, que são sentimentos precisamente ligados às relações sociais e aos olhares dos demais [14]. A intemperança, de resto, sempre desvia o homem de seu justo fim [15] ou de seu fim último, que, na ordem temporal, é o bem comum da cidade onde vive. A matéria da temperança individual ― o comer e o beber ― está ordenada à união carnal, tal como o fim particular está ao fim último [16]; e a união carnal, por sua vez, à continuidade da espécie.

Podemos dizer, de acordo com Santo Tomás, que a temperança se apoia na moderação das duas formas fundamentais de prazer naturalmente suscitadas pelo tato; e que a temperança implica, sem deixar de levar em conta as circunstâncias de lugar, de tempo e de situação social, um equilíbrio entre a natureza racional do homem e seu componente corporal, tão natural quanto a primeira, em que o tato ocupa lugar essencial. A palavra grega sôphrosunê, que traduz temperantia, mostra isso bem. Ela é composta por um adjetivo (sôs), que significa são e de um substantivo (phrên), que designa o envoltório, a membrana de algum órgão que o mantém em unidade e, particularmente, a alma, o coração, a sede dos sentimentos e das paixões. O homem temperante é aquele cujo espírito saudável equilibra ― como o faz a saúde dos órgãos do corpo ― as paixões do coração e, mais especificamente, as paixões do concupiscível, da parte da alma pela qual desejamos necessariamente as coisas do mundo indispensáveis à nossa vida e à da espécie. Requer-se uma harmonia entre a inteligência prática, mãe da ação, e as paixões do concupiscível que fazem parte de nossa natureza. Esta harmonia não é, em última instância, repressão, punição, sufocamento. Como bom discípulo de Aristóteles, Santo Tomás sabe que a alma e o corpo são complementares, e sua fé cristã na ressurreição confirma-o em sua filosofia realista. Para ele, não se trata de suprimir as paixões, mas de impregná-las da vida do espírito, que necessariamente as faz integrar-se à sua vida temporal e à sobrenatural. Trata-se menos ainda de ser moderado no que toca as paixões do concupiscível no sentido moderno da palavra, o qual implica a idéia de pouca intensidade, duma certa fraqueza, dum distanciamento de todo o excesso. Com efeito, se a virtude é um justo meio entre o excesso e a carência, é notável que as paixões do concupiscível manifestem-se antes de forma exuberante, e que a insensibilidade perante elas testemunhe uma carência na constituição natural do homem, pois “a natureza juntou o prazer às operações necessárias à vida do homem”. Seria até mesmo um pecado, acrescenta Santo Tomás, fugir ao gozo que lhes é inerente, assim negligenciando as necessidades desejadas por Deus para a conservação da natureza.

Contudo, uma precisão deve ser dada a esta alegação. Sendo a natureza um sistema hierarquizado de fins, é louvável e até necessário abster-se dos gozos que acompanham as necessidades da vida presente em vista dum fim mais alto, seja temporal ou sobrenatural. Jejuamos para a boa saúde do corpo. Abstemo-nos de bebidas alcoólicas pelo esporte. Restringimos o comer e o beber à guisa de penitência pelos pecados. Os padres, votados às coisas divinas, renunciam ao casamento. Nada disso é insensibilidade, pois tudo isso visa, conforme a resolução mesma da razão reta, a fins cada vez mais altos, muito superiores ao simples trato da vida individual e ao da espécie. Não obstante, é preciso defender energicamente com Santo Tomás que “o bem da razão não pode existir no homem ― dotado de corpo ― se se abstém de todo prazer” [17], e que “aqueles a quem cabe, por razão do oficio que exercem na sociedade, entregar-se aos trabalhos corporais os quais exigem maior abundância de alimento e bebida, ou à geração carnal para assegurar a permanência da família e da cidade, não mereceriam louvor se se abstivessem do prazer” [18].

Sem dúvida, a temperança ocupa o último lugar no cortejo das quatro virtudes cardeais. Ela é inferior à prudência, que adapta com proporção os meios ao fim último perseguido ― seja bem temporal ou bem sobrenatural ― e que é a recta ratio agibilium, a regra objetiva do bem que se deve fazer, e que, para ser alcançado, deve ser o justo meio entre o excesso e a carência. Ela é inferior à justiça, que regula nossas relações com os outros homens e que visa o bem comum, particularmente o da união. Ela é inferior à força, que enfrenta a morte para a salvação pública [19]. Diz Santo Tomás que ela apenas tempera “as concupiscências e os prazeres que se relacionam ao homem em si (ad ipsum hominem)” [20], mas esta expressão, certamente extensa, não visa o indivíduo enquanto tal ― ou a pessoa ― mas o aspecto naturalmente subjetivo do prazer num ser que, por sua natureza, é intrinsecamente social, um “animal político”. O prazer é experimentado subjetivamente ― e a temperança possui um caráter subjetivo ― não no sentido moderno do termo, de um objeto aparente, ilusório, ou de uma puro recolhimento em si mesmo, mas enquanto é da essência mesma do homem de experimentar prazer com o alimento, com a bebida ou com o sexo, realidade cujo caráter social não podemos negar. A inferioridade da temperança em relação às demais virtudes cardeais reside no fato de que estas têm, na ordem das essências, um objeto mais elevado que aquela. A temperança liga-se estreitamente à prudência pois modera as paixões do concupiscível e conserva-as num justo meio razoável entre o excesso e a carência. Ela se une à justiça pelos atos e pela rejeição à intemperança, vício essencialmente próprio ao indivíduo dedicado ao seu prazer pessoal. Ela é companheira da força, que luta pelo bem comum, já que é impossível ser forte sem ser temperante.

Não há nenhuma outra virtude que esteja em mais estreita conexão com todas as demais ou que lhe seja mais extensível: quase todas as virtudes, cardeais ou não, tem necessidade da temperança para se levar a efeito. Seu uso é freqüente, cotidiano, e, se a força a supera “dum certo modo” (quoad aliquid) por seu aspecto social, por sua freqüência necessária e pelos vínculos concretos com as demais virtudes, a temperança pode encontrar a preferência do moralista, não somente em relação à força, mas “mesmo à justiça” [21]. Ela é uma virtude viril e santo Tomás, seguindo Aristóteles, comenta com precisão que seu contrário “é um pecado de concupiscência” excessiva que, de ordinário, atribuímos às crianças [22]. Igualmente destaca, acompanhando “o mestre daqueles que sabem”, que a intemperança é um vício mais grave que a pusilanimidade, porque é mais voluntária, mais própria do homem feito. O pusilânime tem quase sempre o espírito paralisado diante do perigo da morte física ou moral; é mais sujeito aos impulsos exteriores que sofre, mais sensível aos riscos e às ameaças em geral. O intemperante é atraído pelos gozos particulares, adjacentes ou acessórios às concupiscências da natureza. Ora, “é pura e simplesmente mais voluntário o que é voluntário nas ações singulares, nas quais culminam a virtude ou o vício, no sentido próprio dos termos” [23].

Mas, indo um pouco além, estas ações singulares não estão isoladas de seus prolongamentos sociais. A vergonha que se associa à intemperança se opõe à honra e distinção da virtude contrária. Sem dúvida, a intemperança é freqüente em meio à humanidade, e sua repetição, por demais visível, parece diminuir a vergonha e a desonra que se associam a ela na opinião dos homens. Todavia, elas não se apagam completamente dali: a natureza do vício ao qual sucumbe o intemperante, marcada por sua gravidade, opõe-se a isto. Demais, os estigmas deixados pela intemperança sobre o aspecto do homem ― a abjeção de sua conduta libidinosa ― apagam, diz-nos Santo Tomás com profundeza, o brilho e a beleza inerentes ao homem temperante, equilibrado, dono de si, seguro das finalidades que persegue, e cuja razão ilumina, por sua transparência, os atos virtuosos [24]. Um visível envilecimento caracteriza o libidinoso e, na mulher, os artifícios que o dissimulam só acentuam a ausência de castidade. Todos esses sinais, ao mesmo tempo individuais e sociais, cujos sentidos são evidentíssimos, manifestam que o homem ou a mulher entregues à intemperança se rebaixam ao nível do animal, destruindo em si as marcas do seu caráter verdadeiramente humano.

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